Ano novo rua nova

Todo começo é apenas um outro começo, e o fim de todo fim é apenas o começo de algo mais
(Séneca)

 

Cumpriu-se a magia de, num mesmo instante, dois transcendentes acontecimentos ocorrerem: a extinção de um ano e o início de outro. Assim o Tempo, apesar de ser o mesmo, pois nele não há pausas, nem intervalos nem qualquer tipo de solução de continuidade, naquele mágico momento transforma-se, de um tempo que passou, no princípio de um outro que inicia o seu caminho, e, se sempre para este se formulam votos de venturas, não raro traz consigo o receio ou prenúncio de infortúnios que a imaginação recusa encarar.

Ainda assim, do fluxo desse tempo que não existia e magicamente começou no infinitamente pequeno momento do início do seu curso, brota uma importantíssima parte da arte de viver que também aí principia, começando por querer-se que seja nova, diferente e mais bem desempenhada.

“Ano Novo Vida Nova”, é sempre o mais importante projeto do início de cada ano.
Projetá-lo é, só por si, uma importante parte do começo que cada passagem de ano desencadeia.
O termo de cada ano parece eliminar, ao menos relegar para o mais recôndito e menos acessível da memória, tudo o que de mau nele ocorreu, e desse termo como que flui a esperança de que o tempo novo, que lhe sucede, trará a possibilidade do cumprimento do melhor dos desejos que pretendemos ver realizados no tempo a vir. Tempo e vida renovados, portanto.
Muitas vezes é durante o meu calcorrear diário das ruas da cidade que vou refletindo sobre os mais variados assuntos. De há muito o meu itinerário leva-me a frequente passagem pela Rua Nova, oficialmente denominada rua Egas Moniz, mas o povo vimaranense, imerso nas memórias da ancestralidade vimaranense, pouco se impressiona com os nomes oficiais das ruas que sempre foram conhecidas pela toponímia de antanho, como acontece com a rua de Santa Luzia, a Rua Escura, a Tulha, a Feira do Pão – também Feira do Leite – o Campo da Feira, o Cano, etc, etc..
Acontece que, ao passar, nas vésperas da passagem de ano, pela Rua Nova, atentei nas mudanças que a rua, sendo, como o Tempo, sempre a mesma, tem vindo, pouco a pouco, a tornar-se uma outra, passando de rua que poderia dizer-se velha se não fosse o facto de se não chamar de velhas, mas sim antigas, às ruas, mesmo quando velhas, tal como por antigas são referidas ainda que renovadas.
Mas aquela Rua Nova, que sempre se chamou Nova, conheci-a como velha, com feias cicatrizes, feridas graves e rugas profundas. Mas ela foi Nova quando nasceu, e durante muitos anos, décadas, porventura séculos, rua de elite, de burguesia mais ou menos endinheirada, como pode deduzir-se da ainda detetável imponência de muitos dos edifícios que a ladeiam.
Conheci-a ainda escolar da primária, quando as crianças podiam frequentar livremente todas as ruas sem outros perigos que não fossem uma queda ou desacato entre miúdos. Frequentei-a sobretudo no convívio com outros catraios da demolida zona urbana da parte nascente do jardim de S. Francisco, agora Alameda de S. Dâmaso, onde existia a igreja com o nome deste Santo, a Casa dos Pobres e um conjunto de casas onde viviam famílias de menores recursos. Aquelas ruas eram o nosso faroeste, como vassouras de piaçaba já imprestáveis eram os nossos cavalos.
Mais tarde, quando já não brincava aos cobóis, apercebi-me de que era uma rua de tabernas, a que chamavam tascas, e de casas onde se prestavam particulares serviços íntimos aos quais, como ouvi dizer ao major Valentim Loureiro, se alguma vez recorri, não me lembro.

Lembro, isso sim, que aquando das primeiras eleições em liberdade, para a Assembleia Constituinte, em que fui candidato eleito, os moradores do bairro em que a rua se insere eram, na sua grande maioria, adeptos do partido por que fui eleito e em seu favor haviam feito intensa campanha, razão pela qual, confirmada a minha eleição, fui, acompanhado da minha mulher, percorrer a Rua Nova em jeito de reconhecimento pelo contributo prestado à minha eleição. Fomos recebidos com grandes manifestações de júbilo, bandeiras e colchas nas varandas e convites, irrecusáveis, das moradoras, para entrarmos em cada uma das casas, em todas elas nos sendo servidos bolos de bacalhau, pataniscas, rissóis e vinho verde em malga.
Nessa altura, a Rua Nova ainda era a de antanho, quanto às habitações e a quem as habitava.
Foi para mim e minha mulher um momento verdadeiramente mágico!

Hoje, porém, a Rua Nova, que muitos dos seus moradores e utentes desejaram renovada em princípio de sucessivos anos, tornou-se naquilo que para ela foi desejado.
Casas restauradas, por fora e por dentro, muitos jovens, e não só, a habitarem-nas, frequência cosmopolita convivendo com antigos moradores, agora orgulhosos da sua rua, que embelezam com flores e plantas decorativas nas portas e janelas, bares e restaurantes que atraem todo o tipo de utentes, cabeleireiras e esteticistas de modernos e bem apetrechados estúdios, estilistas de serviço integrado, que vão desde o penteado até ao vestido de noiva, passando por propostas tão requintadas como o microblading, design de sobrancelhas, extensão de pestanas, e tudo isto de modo absolutamente personalizado; há a Patisserie de refinado gosto francês, gabinetes de contabilidade, a Delegação da Ordem dos Advogados, uma recentíssima casa de peças de decoração com plantas em recipientes de vidro de belo efeito decorativo, lojas de peças de vestuário e calçado populares, artigos turísticos, apelativo ateliê de artes plásticas, enfim, toda uma cidade naquela vetusta e outra vez Nova Rua, pois nova foi chamada quando, há séculos, nasceu encostada à muralha, chamando-se-lhe Rua Nova do Muro.
Não tão rapidamente como ao ano velho sucede o Ano Novo, mas ainda assim mais rapidamente do que o que poderia parecer, a velha Rua Nova deu lugar a uma rua nova de verdade, que vale a pena frequentar.

Guimarães, 02 de janeiro de 2024
António Mota-Prego
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